Software Livre nos programas eleitorais 2022

Apenas a alguns dias das eleições legislativas portuguesas de 2022, é importante perceber quais as posições dos partidos que contestarão os lugares na Assembleia da República no que toca a Software Livre e Direitos Digitais. Analisámos os programas disponíveis e apresentamos aqui um resumo dos pontos mais relevantes.

Algumas siglas utilizadas no artigo:

  • CNPD: Comissão Nacional de Proteção de Dados
  • RNID: Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital
  • CNCS: Centro Nacional de Cibersegurança
  • RGPD: Regulamento Geral de Proteção de Dados
  • DRM: Digital Rights Management / Gestão de Direitos Digitais, ou, mais corretamente, Digital Restrictions Management / Gestão Digital de Restrições
  • TJUE: Tribunal de Justiça da União Europeia

Defendemos que todo o código financiado por dinheiro público deve ser Software Livre (recomendamos que visitem a página Public Money? Public Code!). Defendemos o direito à privacidade nas comunicações dos cidadãos e somos contra o experimentalismo não fundamentado de voto eletrónico ou online. Para conhecer melhor os ideais defendidos pela ANSOL, sugerimos que leiam o nosso artigo “10 ideias para a próxima Legislatura”.

Actualização 21-01-2022: Fizemos pequenas edições ao texto, no sentido de o tornar mais claro. As versões anteriores estão acessíveis no nosso repositório.

Actualização 28-01-2022: Adicionamos uma tabela de resumo ao fim do artigo para tornar a análise dos programas mais clara.

Partido Socialista

Resumo do programa: Sem referências a Software Livre. Propõem reforçar o serviço Dados.Gov com mais oferta de dados, incluindo dados em tempo real. Propõem generalizar a experiência de voto eletrónico presencial feita em Évora, sem referência a Software Livre ou às críticas da CNPD. Propõem definir um programa nacional de ensino da computação desde o ensino básico, referindo a literacia e ética digitais mas sem referência a Software Livre. Propõem a digitalização dos manuais escolares sem referência a licenças abertas.

Comentário da ANSOL: A generalização da experiência feita em Évora é preocupante, especialmente dadas as críticas feitas pela CNPD. A criação de um programa de ensino da computação pode prender várias gerações às empresas responsáveis pelo software proprietário utilizado, sendo crucial a inclusão de Software Livre nesta iniciativa. Além da utilização de Software Livre neste programa, é importante que seja ensinado o papel dos direitos de autor na criação de software e as diferenças entre software proprietário e software livre.

Partido Social Democrata

Resumo do programa: Sem referências a Software Livre. Propõem lançar uma iniciativa nacional de dados abertos capaz de incluir a construção de modelos de negócio para o sector privado.

Comentário da ANSOL: O programa não toca em direitos digitais para além da cobertura nacional do acesso a comunicações. Não é claro qual a diferença entre o programa “Portugal.Dados” que propõem criar e a plataforma existente de dados abertos do governo (Dados.Gov).

Bloco de Esquerda

Resumo do programa: “O software criado ou comprado com dinheiro dos contribuintes deve ser software livre ou de código aberto, permitindo a reutilização pelas várias entidades da Administração Pública”. Defendem a neutralidade da internet. Propõem o fim do DRM e o fim da criminalização da partilha de conteúdos para fins não comerciais. Defendem que a produção científica com dinheiros públicos deve ser obrigatoriamente depositada em repositórios abertos. Defendem o teste de voto eletrónico à distância com “a participação de especialistas de segurança das Universidades portuguesas, utilização de código aberto e amplo escrutínio público”. Propõem o fim da taxa de cópia privada.

Comentário da ANSOL: O programa aborda positivamente várias questões que julgamos importantes, sendo de destacar a obrigatoriedade de Software Livre quando criado ou comprado com dinheiro público. Os requisitos para o teste ao voto eletrónico à distância são correctos, mas o projecto deveria começar por um estudo sobre o desenho e implementação do processo. Ao começar pelo teste, condiciona-se a desvalorização das críticas que poderiam por em causa a sua exequibililidade, como aconteceu no projeto-piloto de Évora, fortemente criticado pela CNPD.

CDU (PCP-PEV)

Resumo do programa: Sem referências a Software Livre. São contra a censura e a hipervigilância no contexto de direitos digitais, defendem a neutralidade da internet e a não criminalização da partilha de conteúdos para fins não comerciais.

Comentário da ANSOL: Não fazem qualquer referência a Software Livre, tendo apenas algumas referências a direitos digitais.

PAN

Resumo do programa: “garantir que o software desenvolvido pelo Estado, ou cujo desenvolvimento é financiado por recursos públicos, tem o seu código público, ou seja, é software livre, excepcionando situações devidamente justificadas”. Propõem avaliar a migração de todo o software de agências governamentais e entidades públicas para software livre. Propõem reforçar os meios da CNPD e CNCS. Propõem garantir a neutralidade da Internet, proibindo as ofertas de zero-rating. Propõem reforçar o investimento do Estado em infraestrutura própria.

Comentário da ANSOL: Gostávamos de ver o primeiro ponto sem as exceções “devidamente justificadas”, mas pode ser um bom primeiro passo.

Iniciativa Liberal

Resumo do programa: “Reduzir o custo total de propriedade recorrendo ao uso de especificações abertas, como o software Open Source”. Propõem publicar todos os dados de compras públicas de bens e serviços num formato standard único e aberto. Propõem a criação de um datacenter operado pelo Estado para albergar a sua infraestrutura. Propõem implementar uma estratégia de gestão de risco e cibersegurança em todas as iniciativas TIC para assegurar a segurança e privacidade digital. Propõem a neutralização do impacto da taxa de cópia privada, reduzindo a taxa em 50% e estreitando a base de incidência ao reduzir a lista de tipos de equipamentos sujeitos, mas também propõem eliminar todas as isenções existentes.

Comentário da ANSOL: A recomendação de utilização de Open Source é positiva, mas parece haver alguma confusão técnica ao subentender que Open Source é um tipo de especificação aberta. Em relação à taxa de cópia privada, a redução da taxa e da base de tributação vão no sentido positivo, mas a eliminação das isenções tem impacto negativo. A eliminação das isenções remove os poucos mecanismos que as empresas têm para evitar a taxa, apesar de haver decisões pelo TJUE que indicam que a taxa não deve ser aplicada a empresas.

Livre

Resumo do programa: “Construir Bens Digitais Comuns, garantindo que todo o código desenvolvido com dinheiro público fique numa licença de código aberto”. Propõem limitar a utilização de software proprietário na educação apenas a casos onde Software Livre não seja adequado. Propõem introduzir Software Livre em todos os níveis da administração pública e instituições financiadas com recursos públicos. Propõem a criação de livros escolares com licença de autor aberta (Creative Commons). Defendem o direito à fabricação e reparação. Propõem reforçar o papel da CNPD e promover a encriptação de todas as comunicações. Propõem estender o RNID para que sítios oficiais não dependam de serviços terceiros, aceitação de termos estranhos à finalidade do serviço, e não tenham rastreamento durante a interação com o serviço. Propõem participar na construção do Contract for the Web. Propõem melhorar as condições da votação por correspondência e investir no desenvolvimento e experimentação de sistemas de voto eletrónico à distância.

Comentário da ANSOL: O programa aborda positivamente várias questões que julgamos importantes, sendo de destacar o licenciamento de código aberto quando desenvolvido com dinheiro público e a utilização de Software Livre na Administração Pública.

Partido da Terra (MPT)

Resumo do programa: Sem referências a Software Livre. Propõem promover e implementar o voto eletrónico à distância como alternativa ao voto presencial para todos os nacionais, em todos os atos eleitorais, sem referência a Software Livre.

Comentário da ANSOL: Não fazem qualquer referência a Software Livre. Promover a implementação do voto eletrónico à distância sem mencionar a necessidade de estudos preliminares é cair nos mesmos erros que aconteceram no projeto-piloto em Évora, onde, segundo a CNPD, ficaram “[feridos] os mais básicos princípios do Estado de Direito Democrático, com menosprezo pelos princípios da previsibilidade e da transparência do processo eleitoral”.

Volt Portugal

Resumo do programa: “Projetos financiados com dinheiro público deverão ter o código desenvolvido num local de acesso público, excepto em situações onde o segredo de justiça/defesa nacional seja aplicável”. Propõem, nos serviços públicos, substituir faseadamente o software utilizado por Software Livre, padronizar as ferramentas de produtividade e garantir ações de formação. Propõem, na educação, substituir e promover Software Livre, incluindo uma solução para videoconferências cifradas e seguras. Propõem tornar a CNPD numa secretaria de estado com poderes de informação e fiscalização em matérias de dados pessoais e direitos online, com pareceres vinculativos e sanções nos incumprimentos das suas normas. Propõem a adoção do voto eletrónico à distância, depois de testes com a participação de especialistas de segurança das Universidades com o objetivo de ter um sistema seguro, anónimo, verificável, fiável, e acessível, mas sem referência a Software Livre.

Comentário da ANSOL: Apesar de mencionarem que o código financiado com dinheiro público deve ser disponibilizado ao público, não dizem explicitamente que o código deve ser licenciado como Software Livre.

Restantes partidos

Os restantes partidos ou não tinham disponível o programa eleitoral para 2022, ou não faziam qualquer referência a Software Livre ou direitos digitais.

Tabela de resumo

Para tornar a análise aos programas dos vários partidos mais clara, decidimos acrescentar uma tabela onde se reunem os pontos mais importantes para a ANSOL, atribuindo pontos positivos ou negativos consoante a seguinte classificação:

  • 2: Medidas são consideradas boas pela ANSOL
  • 1: Medidas são consideradas razoáveis, mas podiam ser melhores ou não estão suficientemente explícitas
  • -: Não há referência ao tema
  • -1: Medidas são consideradas perigosas, mas podiam ser piores
  • -2: Medidas são consideradas perigosas
PS PSD BE CDU PAN IL Livre MPT Volt
Dinheiro Público, Código Público! - - 2 - 1 2 2 - 2
Neutralidade da Internet - - 2 2 2 - 2 - -
Dados Abertos 2 2 - - - 2 2 - 2
Acesso Aberto - - 2 - - - 2 - -
DRM - - 2 - - - 1 - -
Partilha sem fins comerciais - - 2 2 - - - - -
Voto Electrónico -2 --1 - --1-1-2-1
Taxa da cópia privada - - 2 - - 1 - - -
RNID - - - - - - 2 - -
Bloqueio de sites - - 2 2 - - - - 2
Hipervigilância/Privacidade - - 2 2 2 - 2 - 2
Total 0 215 8 5 412-2 7

Legenda:

Dinheiro Público, Código Público: Todo o código financiado por dinheiro público deve ser disponibilizado ao público com uma licença de Software Livre.

Neutralidade da Internet: Garantia de que os operadores tratam de forma igual todo o tráfego online.

Dados abertos: Disponibilização de dados públicos com licenças livres para poderem ser reutilizados por cidadãos e entidades

Acesso aberto: Produção científica e/ou educativa deve ser publicada em acesso aberto

DRM: Eliminação do DRM

Partilha sem fins comerciais: Descriminalização ou legalização da partilha de ficheiros sem fins comerciais

Voto electrónico: Não devem ser feitos testes piloto sem estudos prévios. Qualquer teste deve utilizar Software Livre e disponibilizado ao público.

Taxa da cópia privada: Eliminação da taxa da cópia privada

Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital: Deveria ter sido revisto até outubro de 2021. Deve ser feita uma actualização tecnológica e adicionados mecanismos para que o regulamento seja cumprido.

Contra o bloqueio extra-judicial de websites: Devem ser revogadas a Lei e o Memorando de entendimento que colocam entidades não judiciais a declarar websites como infractores do Direito de Autor.

Hipervigilância/Privacidade: Medidas que promovem a privacidade dos cidadãos em ambiente digital relativamente às empresas tecnológicas